terça-feira, 1 de novembro de 2011

Visão Noturna

Escrevia eu sobre amor, deus, vida e pátria, quando súbita e inesperadamente, as luzes se apagaram. Todas as luzes da rua e até onde a visão alcançava. Começa então a realidade de um blecaute.

A primeira reação de todos, diante do apagão, é gritar euforicamente, como primatas que desentendessem o desaparecimento do fogo numa tempestade. Depois, comenta-se sobre o óbvio: a luz apagou.

É aí que começam as indagações sobre a causa do blecaute. Não que isso interfira na duração ou na espessura das trevas, mas todo mundo quer saber o que ocasionou aquela ríspida interrupção da vida (um galho tombado, uma árvore inteira caída, um curta, problemas na central, um funcionário descuidado que mexia no fuzil - feriu-se?). Depois é imprescindível desligar os aparelhos para evitar que se danifiquem quando a luz retornar.

Aguarda-se dois ou três minutos, em silêncio, na esperança que a energia volte pra que a vida prossiga. Constatando-se que não volta, vem o tédio. E é preciso destrui-lo a todo custo. Procurar uma vela, um rádio movido à pilha. Nada: nem vela nem rádio. Tudo tem com tomada e até o coração ameaça parar, capengando pra continuar funcionando.

Vem então os vis pensamentos típicos do apagão: bulinar moça bonita, assustar os distraídos. Até que alguém se lembra da câmera digital a tempos esquecida. "Visão noturna", formidável! Liga a câmera: "isso!" ainda resta bateria, alguns minutos de diversão. Brincar de Bruxa de Blair, contar histórias de terror e crime. Mas a visão da câmera também é fraca e logo, muito antes que a bateria acabe, o tédio volta e a câmera é novamente condenada à solidão e à clausura de uma gaveta de inutilidades (talvez seja relembrada num futuro blecaute).

Frustradas todas as tentativas de se distrair, vem a lembrança de que antigamente, e isso nem faz tanto tempo, as pessoas viviam sob o fardo diário da escuridão noturna. O dia terminava mais cedo e era preciso, assim como é hoje e será amanhã, entreter-se. Vem, mais viva que nunca, a explicação do por quê as famílias eram gigantescas e do por quê os homens se embriagavam. Não há vida sem eletricidade. Benjamim Franklin descobriu a vida.

Em breve, as formas espectrais começam a se tornar familiares e, dentro em pouco, distingue-se cada pessoa pela textura da treva, pela altura da sombra. Divaga-se sobre assuntos absurdos, a vida parou pra ser olhada, analisada, como um objeto numa vitrina, um livro no sebo… As vozes se voltam pra dentro, um objeto fluorescente tem seu momento de glória e, não muito comum, vaga-lumes são percebidos.

Mas, mal a vida começa a ser revista, as luzes se acendem. Todos, mais uma vez, gritam eufóricos, como primatas que vissem o fogo pela primeira vez. E a vida prossegue.

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