terça-feira, 29 de novembro de 2011

na rua
outra dose morna de novembro
novembro retornou sem anúncio
encontro o cinema como o deixei
carente de amantes
mentiram ao dizer que a neblina
era passageira
e minha irascível libido continua
reclamando o peso das mulheres
inalcançavelmente ruivas
nos corredores sórdidos
ainda ando insatisfeito contando as notas
e os dedos
- que ainda são cinco


ainda faltam telefonemas amores e verdades
a barba ainda malfeita
os muros pichados
irmãos brigam por iogurte
(quem comeu o último?)
meninas perdem a virgindade com seus primos


novembro chegou mole e despercebido
as árvores indiferentes
as crianças cruéis e espontâneas
os últimos dramas são encenados
adolescentes se fartam da pornografia
e cobiçam pela rua quebradiça
as coxas violentas de Marina


os verbos se escondem
mesmo dos poetas
há um prenuncio de qualquer coisa
que me sacode
como um marido sacode
a mulher histérica no pós-parto


novembro novamente
aguarda junto às mulheres de meia-idade
seus maridos alcoólatras
me aproxima mais uns metros
da morte
e do meu próprio alcoolismo


novembro chegou altivo e escasso
trouxe câncer para uns
e dinheiro para outros
distribuiu a seu bel-prazer
perdas e bilhetes sorteados
amamenta os recém-nascidos
esguicha o leite das tetas rosadas
de milhares de vacas poluídas


buracos se formam na rodovia
sob o peso intolerável
de centenas de caminhões
os objetos continuam inquirindo-me
com seus olhos de vidro inanimados
novos impostos escorrem sobre comerciantes
industriais e funcionários públicos


chegará um dia ao fim
e sem retorno se perderá
restando apenas um vestígio
poeirento e quase imperceptível
desse novembro conquistado
nesses versos insolúveis

segunda-feira, 7 de novembro de 2011

Crônica sobre nada

Como quando descobri que com minha poesia não dava pra fazer música. Fiquei pra baixo, decepcionado, completamente desolado. Por que afinal, então, eu continuava a escrever aqueles versos se eles nunca seriam acompanhados por um violão cadenciando, um pandeiro sincopado, uma cuíca chorosa? Ou por um guitarra arranhada, um baixo pesado, percussões desorientadas? Pra que continuar, se eu estava fadado a não ter a romântica e inconseqüente vida boêmia, repleta de mulheres, bebidas e lágrimas? Dois ou três acordes, eu já estava satisfeito.

Mas não: "com essa rima, não dá pra fazer música", " esse verso tá grande demais" , "falta sonoridade". O que exigiam de mim? Que calculasse a emoção, equacionasse a dor, e colocasse redondilhas e rédeas na espontaneidade tão dificilmente conquistada ?

A primeira reação, nem um pouco imprevista, diante do fato, foi a de revolta e da negação. Depois veio a dor, agonia, desespero, etc. Parei de escrever, sucumbi a um breve hiato criativo. Por fim a resignação.

Em breve, já estava voltando a escrever meus poemas de versos longos e sem sonoridade. Como um adolescente que, depois do fascínio da esquerda, compra um computador e entra na faculdade de direito.

Mas hoje, depois desses anos de faculdade, voltei a sentir a revolta, tentei fazer um samba, um choro, uma bossa. Fui montando esse tetris da vida com frustrações clichês, metáforas pobres, dores banais. E hoje vejo, claro como o Arrudas, que também posso remontá-la com esperanças fúteis, amores platônicos, paixões imaturas, pirraças e palavrões.

Só resta agora alguém vier me dizer, certamente com toda razão, que esse texto também não serve como crônica.

sexta-feira, 4 de novembro de 2011

sim, realmente existem cores
para cada coisa
o cabelo ruivo dela, por exemplo
lembra fogo sangue
brasa ardente
derretendo a mussarela
com que eu faço meu misto quente

a grama é verde e não pode ser pisada
meu sorriso tem uma cor amarelada

a pele branca dela
é como leite derramado
num vestido de cetim

o céu está cinza e nublado
mas nem sempre foi assim

quinta-feira, 3 de novembro de 2011

assim eu queria que me conhecesses:
terno, sensível, inteligente, carismático
não um menino cru, puro, radical, quase asmático
com o fôlego oscilante e dramático


assim eu queria que tivesses me conhecido:
seguro, elegante, sofisticado, consciente
mas apareceste do nada e eu estava perdido
sem maquiagem e distante
em apuros, desesperado, atrasado e errante


não como o menino que pode mais do que é
e que se podia ter sido provavelmente não foi
que sempre anda a pé por não ter pressa
e que não tem pressa porque não tem fé
inteligente mas patético, emocionalmente epiléptico
simples como um boi


queria que me conhecesses no final
quando não restasse mais nada além de fogo, bomba e flor
quando eu pudesse saturar o ar, a mente e a vida
com respeito, paixão, caos e dor

terça-feira, 1 de novembro de 2011

se a canoa não virar
chego seco do outro lado

se virar, chego molhado

Nem

Há tempos que me deixava levar por idéias radicais, como se o radicalismo fosse evidência de firmeza de caráter e opinião, de consistência, de substância e fidelidade. Por fim, descubro que extremismos são nocivos, levam ao preconceito e à uma rigidez tola de postura. Como nos lembra Chico Buarque, em resposta à sua omissão na passeata contra a guitarra elétrica: "nem todo lucidez é velha, nem toda loucura é genial". E digo mais.

Nem toda musa é bela. Nem todo filho é pródigo. Nem todo samaritano é bom. Nem todo gênio é louco. Nem todo vice é versa. Nem toda lei é constitucional. Nem todo clichê é banal. Nem todo cigarro é fatal. Nem todo último cigarro é o último. Nem toda poesia tem verso. Nem todo sexo tem gozo. Nem todo gozo tem amor. Nem todo amor é cego. Nem toda grama é verde. Nem todo narciso é só ego. Nem todo deserto é sede. Nem todo poema é beco. Nem toda raiz é quadrada. Nem toda doação é gratuita. Nem toda traição é fortuita. Nem todo spielberg é ficção. Nem toda ficção é mentira. Nem toda mentira tem perna curta. Nem todo sexo é seguro. Nem todo seguro é seguro. Nem todo filho é da puta. Nem toda puta é mãe. Nem toda mãe é sagrada. Nem toda água é de março. Nem todo vento é de maio. Nem todo virgem é cabaço. Nem todo sexo é desmaio. Nem todo nervo é de aço. Nem todo trem é de ferro. Nem toda comédia é divina. Nem toda bossa é nova. Nem toda lolita é menina. Nem todo defunto tem cova. Nem todo carnaval é em fevereiro. Nem toda quarta é de cinzas. Nem todo campeão vem primeiro. Nem todo bruce é lee. Nem todo jackie é chan. Nem toda lee é rita. Nem toda grupe é fã. Nem todo ponto é final. Nem todo final é feliz. Nem todo desenho é animado. Nem toda asa voa. Nem todo baiano é à toa. Nem todo jejum é manifesto.

Nem todo político é corrupto. Mas isso são apenas aforismos. E nem todo aforismo é correto.

Visão Noturna

Escrevia eu sobre amor, deus, vida e pátria, quando súbita e inesperadamente, as luzes se apagaram. Todas as luzes da rua e até onde a visão alcançava. Começa então a realidade de um blecaute.

A primeira reação de todos, diante do apagão, é gritar euforicamente, como primatas que desentendessem o desaparecimento do fogo numa tempestade. Depois, comenta-se sobre o óbvio: a luz apagou.

É aí que começam as indagações sobre a causa do blecaute. Não que isso interfira na duração ou na espessura das trevas, mas todo mundo quer saber o que ocasionou aquela ríspida interrupção da vida (um galho tombado, uma árvore inteira caída, um curta, problemas na central, um funcionário descuidado que mexia no fuzil - feriu-se?). Depois é imprescindível desligar os aparelhos para evitar que se danifiquem quando a luz retornar.

Aguarda-se dois ou três minutos, em silêncio, na esperança que a energia volte pra que a vida prossiga. Constatando-se que não volta, vem o tédio. E é preciso destrui-lo a todo custo. Procurar uma vela, um rádio movido à pilha. Nada: nem vela nem rádio. Tudo tem com tomada e até o coração ameaça parar, capengando pra continuar funcionando.

Vem então os vis pensamentos típicos do apagão: bulinar moça bonita, assustar os distraídos. Até que alguém se lembra da câmera digital a tempos esquecida. "Visão noturna", formidável! Liga a câmera: "isso!" ainda resta bateria, alguns minutos de diversão. Brincar de Bruxa de Blair, contar histórias de terror e crime. Mas a visão da câmera também é fraca e logo, muito antes que a bateria acabe, o tédio volta e a câmera é novamente condenada à solidão e à clausura de uma gaveta de inutilidades (talvez seja relembrada num futuro blecaute).

Frustradas todas as tentativas de se distrair, vem a lembrança de que antigamente, e isso nem faz tanto tempo, as pessoas viviam sob o fardo diário da escuridão noturna. O dia terminava mais cedo e era preciso, assim como é hoje e será amanhã, entreter-se. Vem, mais viva que nunca, a explicação do por quê as famílias eram gigantescas e do por quê os homens se embriagavam. Não há vida sem eletricidade. Benjamim Franklin descobriu a vida.

Em breve, as formas espectrais começam a se tornar familiares e, dentro em pouco, distingue-se cada pessoa pela textura da treva, pela altura da sombra. Divaga-se sobre assuntos absurdos, a vida parou pra ser olhada, analisada, como um objeto numa vitrina, um livro no sebo… As vozes se voltam pra dentro, um objeto fluorescente tem seu momento de glória e, não muito comum, vaga-lumes são percebidos.

Mas, mal a vida começa a ser revista, as luzes se acendem. Todos, mais uma vez, gritam eufóricos, como primatas que vissem o fogo pela primeira vez. E a vida prossegue.