quarta-feira, 25 de abril de 2012


se a gente não paga mais meia
pra entrar no cinema
sem problema
voltamos pra faculdade
ou se você ainda não tem idade
sem dilema
a gente falsifica 
sua identidade
se a cerveja encareceu
não é problema meu
muito menos seu
a gente bebe cachaça
com mel
ainda que não mais  se faça
cigarro fiado
a gente compra
com esse trocado
meia dúzia
de marlboro picado
se a gasolina está cara
a gente vai a pé
e se mesmo pra rezar 
é preciso dinheiro
a gente acaba com a fé
ou com o desespero

quinta-feira, 22 de março de 2012

Textura

Foi então que meti na cabeça o propósito de ser cronista. Enchi o copo, acendi um cigarro e comecei. O processo, sabia eu, a exemplo dos grandes projetos, seria lento, doloroso, masoquista, como o gozo de arrancar com pinça um teimoso cabelo encravado ou incitar o ciúme da namorada.

Antes de qualquer coisa, era providencial ir à biblioteca, ler os clássicos, a fim de aperfeiçoar o estilo, tornar o texto mais articulado, o ritmo mais desenvolto, sóbrio. Ou mesmo (por que não?) começar plagiando o estilo dos grandes até amadurecer o meu próprio, como o pupilo que imita o ofício do mestre para, por fim e um pouco decepcionado, superá-lo. Mas não. Os clássicos são insuperáveis e minha visão limitada; o pasto é grande, e o boi está longe...

Feito isso, resta escrever, certo? Ainda não. É preciso rebuscar a escrita, ler gramáticas, alguns pronomes pessoais transferíveis e intransferíveis, decidir sobre o quê escrever. Sobre o cotidiano, certamente. Mas o cotidiano é vário e inconstante. Mal traço uma conversa e a conversa muda de rumo, desembocando num córrego, num aterro, numa cova. Deve-se, pois, ir atrás, enlaçar o cotidiano - com um nó frouxo, claro - mas enlaçá-lo, reter-lhe nas mãos, apaziguar as ondas de letras do teclado.

Ser cronista, então, começa a se tornar algo burocrático, enfadonho, fardo demasiado pesado, desgostoso, tanto pra quem lê, quanto pra quem escreve, ferindo a sensibilidade do escritor e do leitor. É necessário embriagar-se, fazer girar o verbo, bolinar o substantivo, ser avaro, cobiçoso, imoral, gigolô. Já se sabe a altura, a textura da pele, o peso da crônica, sabe-se a cor do vestido que usa, de que é feito, se está ou não na moda, se é de grife ou não. Agora é imprescindível espiar-lhe debaixo do vestido, dizer-lhe inocentes imoralidades, cortejá-la com a firmeza do músculo e da voz, acrescentar exclamações, interrogações, reticências absurdas. Ser e mostrar-se homem feito, maduro, forte, e louco.

Acima de tudo, parecer louco, apaixonado e desesperado, como o grito abafado do subúrbio, do funcionário público poeta nas horas vagas, da atendente sem ambições da loja de sapato. Esquecer os grandes acontecimentos do mundo (desastres ambientais, políticas de reforma social, queda ou alta do dólar, déspotas destituídos, a quantas anda a guerra do Iraque, Obama, a mulher de Michel Temer, o desaparecimento de Belchior, Haiti, holdings, corrupção no sistema carcerário) e lembrar da dama do lotação, das inúmeras damas de lotação sarapintando pintadas e louras dentro de rinocerontes metálicos abarrotados de pernas, odores, carteiras, sacolas, refrigerantes. Redescobrir os bêbados, os sambas, as putas, os irrelevantes escândalos familiares, as pequenas falências, crimes de amor, ler tablóides ordinários (Abaixo os vigilantes intelectuais!).

Mas, depois da fase de desbunde, revolta e insanidade, é necessário ir tratar-se: uma estadia tranqüila num spa, numa fazenda, num hospício. Acalmar a linguagem, recolocar-lhe rédeas e rumo. Resignar-se com as falhas de caráter de alguns homens, com a falta de escrúpulo de algumas mulheres. Ler poesia, conversar com avós (ainda que não os seus); tomar sorvete, quando calor e chocolate quente, quando frio; beber, socialmente, uma ou duas cervejas geladas numa tarde abafada. Preparar-se por fim para a formatura, para tirar o diploma, a foto do convite, parecer disposto para o mercado com tantos desempregados. Mas é preciso ter esperança de que tudo dará certo e de que, daqui a dois ou três anos - no máximo! - você já estará estavelmente empregado, pagando as prestações do consórcio, começando a conhecer candidatas para o matrimônio. Depois, casar, ter filhos, educá-los melhor que seus pais o educaram, na certa cometer alguns erros parecidos, mas amá-los. Acima e além, amá-los! E amar cada crônica bonita, suja, caduca. Amar cada uma como se fosse o primeiro filho, a primeira mulher, a primeira promoção; como se, cada uma fosse uma perpétua e inigualável epifania.

domingo, 18 de março de 2012

terça-feira, 13 de março de 2012

Poema calado

Nem nasceu
já foi censurado

outro poema exagerado

quando deus te pariu
se contorcendo na dor pálida do parto
vomitando os átomos delicados que a compõem
repousando depois sôfrego sobre uma galáxia extinta
histérico e absorto
num desentendimento de presa distraída 
tentou inutilmente cortar o próprio pulso 
se enforcar na linha do equador
se afogar na lama do caos
depois que lembrou que não inventara a morte para si
e que nem ao inferno poderia ser mandado
pra que um demônio o distraísse com os jogos sádicos das trevas
nem com o fogo purificador do subterrâneo
e que nem o céu o saciaria com os opiáceos angelicais
ou com a morfina tranqüilidade das nuvens
ou com a enfadonha careteza do éden  
quando constatou isso tudo
num momento de ira resignada e rancor acre
num gesto terrorista e profano e numa dor de boca desmamada
me criou

rato

vejo um rato galgando a parede porosa
e se esconder numa telha quebrada
sinto um ódio súbito do rato
corro a pegar um pedaço de pau qualquer
e
caço o bicho
odeio-o não por que transmita doenças
nem por que seja feio e sujo
nem mesmo por que roube minha comida 
e cague em minhas panelas
sinto um ódio mortal do rato 
como um louco odeia outro louco
por não suportar saber da própria loucura
espero 
não sei o quê
sei que espero 
e a espera 
é tudo que quero
& quem me vê 
assim à toa
nem imagina 
que a consciência voa
aguardando uma rima
uma aguardente
um sentimento quente
um veneno ameno
que se não chega a matar
grava na pele ofegante
esse horror elegante
que é esperar
eu fui como eu fui
como quem some
impassível
caligrafia tosca e
ilegível

eu foi como eu fui
substantivo banal
e resumido
que agora divido
e que a cachaça dilui

eu fui como eu fui
de marcha 
mudando
como quem se encaixa
na areia

eu fui como serei
pessoa alheia
escutando
de cabeça baixa
o canto da sereia
eu nunca fui brasileiro
nunca toquei pandeiro

nasci de montanha
serra acima
nasci sem rima 
placenta de terra
 
nasci de repente 
não me perguntaram
detalhes básicos como data, filiação
naturalidade e
classe social

nasci de improviso, careta
anestesiado 
nasci tarado
filho de deus, irmão do capeta

nasci de luto
virgem, cego e mudo
eco de um orgasmo
fruto de um espasmo
da noite violenta

nasci de um mito
mas já esqueci a expressão 
da carne em ebulição
e a poesia do primeiro grito